quinta-feira, 25 de agosto de 2016

Taça de Fel

A visão que eu tinha do outro era a mim mesma, embaçada.
Que deslumbrante espelho tu foste!

Como dizer que antes nunca o tivesse tido? Pois que nunca me pertenceu, nunca me pertenceria.

Como pensar que preferia nunca ter sorvido do teu vinho seco, deliciada no torpor de uma alma qualquer que se apossou de mim - não a minha.

Sigo com as mãos vazias.
Jamais me deste coisa alguma além de um pálido reflexo de mim mesma.
Deveria ser-te grata por isso, eu sei.

Mas amargo perdas do que nunca tive.
Amargo que me desce pela garganta, e que eu, nauseada, preciso engolir.

Desce aos soluços.
Desce rasgando minhas entranhas.
Mas é preciso engolir.

Há que se escolher bem as taças das quais sorver a ilusão.

Resta agora o fel final do teu extravagante licoroso.




terça-feira, 16 de agosto de 2016



Uma enviada da própria Afrodite
Acerca-se de mim e sussurra:

" - Ingênua criança...
Embriaguei-te do maior dos deleites...
Agora sorve da taça de fel!!!"

...

Escorpião, escorpião...
Parte de ti que sou,
Parte de mim que és,
Tinhas que me tornar tão concupiscente?



E de nada adianta negar-te.
Preso em minhas entranhas arquitetas
Armadilhas, artimanhas
Refém que sou de tua sina.

...

Afrodite, Deusa Impiedosa
Que tantas vezes tomaste em tuas mãos gélidas
Meu coração destroçado,
Um dia hei de vingar-me de ti!
Um dia, poder sobre minha carne fraca
Não mais terás,
Pois hei de conquistar a velhice!





Render-se à Mudança

     Tudo está em constante transformação.
     Se o próprio universo segue em seu inexorável balé de transformação,
     Por que logo tu, minúsculo ser
     Na crosta de um mundo entre inúmeros,
     Haverias de lamentar pelas reminiscências
     Do tempo que passou?

     Não é preciso que voltes teus olhos ao universo,
     Eis que a mudança corre a teu lado,
     Corre dentro e fora de ti:
     Teu corpo envelhece,
     Por que teus relacionamentos não haveriam de se transformar?
     E por que lamentar-lhes a transformação?

     Aceita de bom grado a mudança,
     Recebe-a de bom grado e braços abertos,
     Não sabes tu, criança do tempo,
     O quão esplendorosos desígnios divinos te aguardam.
     Aceita, pois, e não retardes a oportunidade pelo Pai tão generosamente concedida
     Ele conhece o que é para teu bem.

     Não se constrói o novo sobre estruturas antigas.
     A mudança é necessária, a fim de ceder espaço a que o novo possa surgir.
     Ledo engano creres ainda que, sepultado com teus pertences, com eles partirás para a nova vida.
     Tua nova vida é nua. E assim deve ser.
     Despoja-te, pois, em vida
     Das vestes velhas que um dia te serviram,
     Das tantas outras vestes que antes te serviram em Samsara,
     E assume tua forma nua.
     É a única coisa que tens.
     É a única coisa que és.


Hare, Lord Shiva!

domingo, 7 de agosto de 2016

As Mais Doces Balas

     Do lado de fora do restaurante, uma moça impaciente grita: "Bala! Quer bala? Compra uma bala, por favor???". Seu tom era quase impositivo.  Acenei com a cabeça que não.

     Mas ela trazia uma criança nos braços, e estava determinada. Senão a vender e conseguir dinheiro, a descontar em quem quer que fosse a revolta pela amargura da vida - eu supunha.

     Deu a volta por trás janela, e entrou de arroubo no restaurante. Passou por minha mesa com a fúria determinada de quem não tem escolha diante do que a vida lhe impôs. Esbarrou em meu prato, que quase voou, e foi vender suas balas nas mesas adiante.

     Com a fúria com que ela vinha, segurando a criança nos braços, me perguntei se aquele esbarrão não teria sido proposital. E, a partir de então, ganhei eu a oportunidade de escolher se reagia com o olhar fuzilante de quem um dia eu fui, combativa e tantas vezes intolerante; ou se lhe concedia o benefício da dúvida. ...Era bem verdade que, em outros tempos, eu seria capaz de lidar da mesma forma que ela diante das vicissitudes, e eu certamente teria sido capaz de esbarrar de propósito. Teria, sim, sido capaz de virar com sarcasmo e arrogância, e dizer "desculpe". Nunca fui melhor que ninguém, aliás, já fiz muitas coisas das quais não me orgulho nem um pouco.

     Ela voltava das mesas do fundo, onde oferecera balas a todos, mas ninguém comprara. Voltava em minha direção, a criança num braço, a caixinha de balas no outro, com um certo receio no olhar. E esse era o momento da minha escolha.

     Em frações de segundo me veio à mente toda a revolta amarga que um dia eu havia provado, por todas as vezes em  que me sentira impotente diante das vicissitudes, também com um filho nos braços, e com a fúria de quem não tem outra opção a não ser enfrentar a vida. A partir daí, a escolha estava feita.

     Aquelas foram as balas mais doces que já comprei.

     Vi o semblante no rosto da moça se transformar, em segundos sumiu a apreensão e seus olhos se iluminaram, agradecidos.

... E então uma voz, que me é muito familiar, passou a soprar-me ao pé do ouvido que, na vida, estamos sendo testados a cada momento. Que podemos, sempre, escolher de que modo reagir diante de tudo o que nos acontece. Que diante de nossas escolhas se desenrolam caminhos cujas vicissitudes no futuro venhamos, talvez, a atribuir ao acaso, ou mesmo à injustiça do mundo. Que, portanto, é preciso estar sempre atento para que os frutos não se percam. Que o defeito que vemos no outro é bem provável que o tenhamos em nós mesmos. Que o livre arbítrio há que ser exercido com responsabilidade mesmo nas pequenas coisas, pois de pequena em pequena coisa nossa alma vai se enriquecendo...


...E que, ainda que não haja sinal algum de amor, deve-se distribuí-lo.
   É pelo exemplo que se aprende a amar.


Um abraço. Um único abraço.
Bastou o calor momentâneo de um abraço para imprimir tua alma na minha.

Se eu te abraçar de novo,
será uma visita à eternidade contida
nos poucos instantes daquele abraço.
Dentro dele o tempo não gira.

Não me olhes nos olhos,
porque sabe-se quem estará lá dentro!
Eu, certamente, terei fugido de mim,
Estarei abrigada, confortavelmente,
No deleite do pulso do teu coração.

Não me olhes nos olhos,
não haverá ninguém ali.
Estarei enlaçada em tua alma,
esqueça-se o corpo de mim!

Deixa-me restar na tua presença
Pelo espaço de um momento,
que isso há de me bastar.

     

(imagem: "Abraço Cósmico" - James R. Eads)

sábado, 6 de agosto de 2016

Cerra teus olhos, meiga criança do tempo, que não perdes a inocência de ser.

Menina ainda
Voltarás aos braços da mãe amantíssima tal como vieste ao mundo - nua, e sem defesas.

Atenta, que é chegada a hora de despertares para as coisas do espírito, eis que ao mundo de Maia tua alma alva não mais pertence.

Atenta, que enquanto te desfazes da roupagem terrestre, se desvelam aos olhos do espírito as grandes fortunas do porvir!

sexta-feira, 5 de agosto de 2016

"Que não me censurem os Deuses,
Pois divino é o que se sente
Quando as peles se tocam,
Feito febre, coisa ardente,
E eu também chamo desejo de amor,
também chamo paixão de tesão.

Das portas que abri na mente,
Muitas vão direto de encontro ao coração.
Liberam o corpo pagão,
Fazendo a alma dançar dentro do peito,
Rodopiando ao som de harpas em uníssono,
Como nas orgias de vinho tinto,
Condenadas há séculos atrás,,,
A mim sempre pareceram alegres,
Inocentes, e de um riso santo!

Que a mente jamais se perturbe
Com os impulsos que não se contêem
Quando a alma teima em não descansar em paz!

Até que um coro, em mil vozes, aplaude forte
A cor pura das luzes de quando os corpos se tocam,
Transparentes,
De forma assim tão natural, tão quente,
Que os anjos do alto consentem,
Sem nenhuma objeção:
Que se faça do amor dos corpos
Imaculada canção!"

(1991)

...

Sublimei a carne.

Para que ela desperte, não é preciso nenhuma fúria insana de hormônios. Não é preciso fantasias, nem artifícios. Dispenso lisonjas, galanteios baratos. Fujo da carne nova e de seus caprichos.

Para que ela desperte, há que me tocar o coração em primeiro lugar. Se me tocar o coração eu me inflamo, tal qual brasa num sopro de ar. E palavras, então, tornam-se supérfluas. Basta-me a comunhão verdadeira.

Guardo as pérolas, já que os porcos não lhes apreciam o valor.
Pérolas gestadas cuidadosamente em ostras no fundo escuro do mar de minha alma.



quinta-feira, 4 de agosto de 2016

O sol que a cada dia nos aquecia, que esplêndidos crepúsculos pintava!




Estate 
Sei calda come i baci che ho perduto
Sei piena di un amore che è passato
Che il cuore mio vorrebbe cancellare

Estate
Il sole che ogni giorno ci scaldava
Che splendidi tramonti dipingeva
Adesso brucia solo con furore

Tornerà un altro inverno
Cadranno mille petali di rose
La neve coprirà tutte le cose
E forse un po' di pace tornerà

Estate
Che hai dato il tuo profumo ad ogni fiore
L'estate che ha creato il nostro amore
Per farmi poi morire di dolore.

(Bruno Martino)

quarta-feira, 3 de agosto de 2016

A Alma Irmã


Alma absolutamente nua, eu vejo tudo em ti.
Ainda que envolta em mil vestes do tempo, com que facilidade te desnudas a meu ver!
Despida de armaduras e de máscaras, só o que te cobre é o manto amoroso da verdade, minha alma irmã!

Segue ciente de que não estás sozinha, porque na relatividade do tempo e do espaço eu sempre te acompanhei!

Segue ciente de que teia alguma da vida há de afastar-me de ti, porque sou tua parte!

Vejo lírios no horizonte - "não fiam nem tecem" - entretanto só tua alma desnuda, aos meus olhos, se veste como um deles!